Saturday, October 14, 2006

Enchidos de Heraclito


Passei hoje a limpo velhas traições a um Heraclito a que já não me pretendo fidelizar. Cada vez mais me são alheias as pouco hormonais restituições hermeneuticas e outras cruzadas afins. Sinto-me cada vez mais oliquamente perspectivista, atiçadamente anamorfosiante. Há uma euforia na distorção que dá uma alegria aos irrestituíveis passados. Por isso, posso cantarolar com o Àlvaro Lapa e garantir que esta nossa razão, mais alegre e quiçá demente, é mais forte que a velha das calendas gregas dos brejeiros e obscuros tempos em que a filosofia pareceu nascer. Irritante pretensão? Porque não?

I. Os olhos dão testemunho mais exacto que os ouvidos.
II. Disposição que se esmera em não se mostrar é mais forte do que a que se oferece de bandeja aos sentidos.
III. O que se manifesta carnavaleia.
IV. Quem busca quimeras acha reflexos e pó (ou: quem busca a espectral verdade apenas encontra petreficantes razões)
V. Indaguei o que em mim se vai fazendo.
VI. O que se dá a ver e escutar merece um pensar-se.
VII. Os cães, ao ladrar, mostram desconfiança aos exotéricos.
VIII. Conhecer muitas coisas é dispensável para quem cultiva a astúcia da prudência.
IX. O soberano, e suas matilhas de oraculos que são soltas em Delfos, não desvenda nem oculta, mas dá pistas.
X. Se a esperança não te habita (ou a conjectura) nunca acederás ao inesperado: em inexploradas vias não se abrem caminhos.
XI. Mesmo os daimones poderosos arredam pé dos nossos pensamentos, pois não lhe damos trela.
XII. Mesmo o sábio dos sábios, em presença de daimones poderosos, se assemelha ao burro dos burros.
XIII. A beleza símia, comparada com a que habita os homens, é feioquita.
XIV. O que se opõe, permanentemente se compondo, é a ubiqua obliquidade.
XV. A via que rebaixa e a que sublima são a mesma treta.
XVI. A ilusão propaga-se nos homens quando estes se detêm no fluxo das aparências.
XVII. Assim o achou Homero, sabio entre homens. Crianças que matavam piolhos enganaram-no dizendo: o que vemos e agarramos, abandonamos, o que não vemos nem apanhamos, esmagamos.
XVIII. Se tudo o que é coisa é fumo, então são as narinas que destilam o seu sumo.
XIX. O que contraria acorda. O que conflitua belamente dispõe. O que se vem é atlético.
XX. O demónio lutador triunfa nas coisas.
XXI. O atlético impera: nuns distribui o divino, noutros a humildade. A uns amarra, a outros liberaliza.
XXII. Nem luz nem sombra, nem bem nem mal nascem de indistinto fundo. Ambos se entre-engendram porque são um Mesmo.
XXIII. Nos limites do circulo cada ponto é principio sem principio.
XXIV. Dentro dos fluxos revoloventes o que serpenteia é identico ao que se endireita.
XXV. Para os vigilantes as coisas são identicas e comunicam. Para os que dormem as coisas sonham segundo cada qual.
XXVI. O homem habita-se nos daimones.
XXVII. Mesmo no sono cooperamos, revigorando as coisas.
XXVIII. Coligações: englobante/refratário, convergente/divergente, disposição/oposição. Pela multiplicidade singularizamos. Pela singularização multiplicamos.
XXIX. O reuninte é: divisível/indivisível, originado/potêncial, discursivo/acordante, pai/filho, daimon/homem.
XXX. Não me são minhas as palavras, sómente a Vib-resão (ou o vib-ratio) vos é dada a escutar – o que conectamos devolve o Mesmo.
XXXI. Não percebem como o que resiste pode reunir – harmonia de opositores como no arco e lira.
XXXII. O que nomeia o arco é vida, o que ele desenha é morte.
XXXIII. Entramos e ficamos por entrar no Mesmo do rio. Somos sendo. Acedemos cessando.
XXXIV. Aqueles que mergulham no que identicamente flui, banham-se em àguas permanentemente renovadas.
XXXV. Humidos são os sopros.
XXXVI. É preferivel dar cabo da desmesura do que andar a apagar fogos.
XXXVII. Não podemos agarrar os contornos (ou os cornos) daquilo que pensa, pois teus passos também não conseguem trilhar o fim dos caminhos. Ainda mais funda é a Vib-rezão que nos estremece.

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