TRATADO DA CONTRAFACÇÃO DO PENSAMENTO
Resolvi dar à pulverizante rede ( que não imprime nem estampa) este texto de há 4 anos atrás que parodia um tratado chamado Della dissimulazione onesta do Torquato Accetto, teórico seiscentista que em muito nos precedeu (e que ilumina quer os antigos Sofistas, quer Nietszche). Espero que vos apraza. Quem me dera ter o canoro Canudo De Aristóteles do Emanuel Tesauro à mão para também armar a minha tenda teórica de dissuasoras argúcias sobre o tapete trepidante da sua metafórica prosa!
Trattato della contraffazione del pensiero
(Renato Ornato)
XV. Os cautelosos vivos soem-se acompanhar de um pensamento polivalente, de harmonias estridentes, que não saem nem da lingua nem dos dentes. Os incautos deixam-se cegar pelas mirambolantes maravilhas que enchem e ecoam no céu e na terra, como presas para a persuasão devoradora.
XVI. O prazer arma as suas tendas. Aqueles que se deixam tragar na guerra dos simulacros ignoram do autêntico prazer a indecência e o pudor, e a forma como os astros favorecem os animais que em tudo dissimulam.
XVII. Os homens procuram a justiça como uma bomba que defraude os encantamentos.
XVIII. Mas a vida não passa de má montagem cinematográfica. Tal como os sonhos e todas as bizarrias psicológicas.
XIX. Ele viu os cedros como uma concisão absoluta, como a gramática do extase.
XX. E a minha amada era um alvo honesto cheio de floridas evidências.
XXI. E disfarçava na beleza as maneiras violentas que lhe assomavam no peito.
XXII. Emudecia, como quem tolera o silêncio.
XXIII. Percepitava-se na contemplação com uma suave sapiência.
XXIV. Todas as estradas são precepícios.
XXV. A vaidade não procura quem a aconselhe. Tudo é vaidade, sobretudo os deuses, as metafísicas e a fuga das garras suaves da vaidade. Encontrarás vaidades intelectuais, namoros com o Demiurgo, orgulho no ascetismo.
XXVI. A verdadeira cognição não precisa de etapas. Vai direito ao assunto. As etapas podem ser vírgulas ou pontos de exclamação quando o caminho é longo.
XXVII. Estarás sempre em desvantagem – essa é a tua vantagem.
XXVIII. O sujeito é um negócio. É o indivíduo enquanto transacção de máscaras sociais. É o movimento das dificuldades íntimas. É um subterfúgio que procura na encenação dos gestos uma maneira extravagante.
XXIX. Se puseres nas palavras as pequenas coisas não darás a entender que a tua ambição procura ter filhos.
XXX. A intencionalidade é algo decisivamente selvagem.
XXXI. As cicatrizes são julgamentos que recaiem sobre os outros. As feridas desculpam-nos. Mesmo quando não são convicentes.
XXXII. Adiar uma coisa como se a reduzissemos a zero.
XXXIII. Será preferivel emendar ou liquidar?
XXXIV. A dissimulação parece uma diminuição para o vulgo. Trata-se, no entanto, de providenciar os aumentos, de dar fôlego à potenciação.
XXXV. O que escrevo é para arrasar a minha vontade. Mas ela sabe resistir.
XXXVI. O gosto do público é uma má esperança e uma desastrosa consolação.
XXXVII. A nudez mitológica de Adão e Eva é que encena a fraude – a criatura que se veste é uma simuladora. A pele edénica é uma máscara. Uma máscara inocente. É só através da censura sexual que as partes baixas se tornam obscenas.
XXXVIII. A descoberta do pudor é apresentada como uma tragédia, como o nascimento da culpa, mas este texto biblico está destituído das violências fundadoras e dos rituais de sangue que lhe seguirão. A culpa surge num ambiente de comédia brejeira, e será difícil não desculpar criaturas tão naifs que cometem uma infração tão ligeira quanto o provar um fruto proíbido (a quem se destinaria tal fruto?). A severidade da punição é desproporcional, e o Criador também tem a sua quota-parte de responsabilidade neste argumento de opereta.
XXXIX. A simulação começa na roupa, no vestir, na puritanização. A simulação institui a pornografia. A diferença entre pornografia e fotografia é irrisória. É na pornografia e na fotografia que o Mal se exacerba como hipotética transgressão, como reedição da culpa, e entrega masoquista à exploração desse sentimento complexo. O prazer da transgressão é, de certa forma, um exebicionismo para «Deus», uma espécie de acusação, uma delirante adulação.
XL. A confortável neblina da mentira...
XLI. Muitos excluem-se da redoma social para se consagrarem às cadências do romanesco.
XLII. As canduras voltam a adocicar os venenos.
XLIII. Há momentos em que as infelizes contradições se tornam divinas.
XLIV. Cada época procura industriosos argumentos. A desordem proporciona-os.
XLV. O significado é uma ponte entre uma opinião maliciosa e um acolhimento cínico.
XLVI. As verdades até acabam por ser bonitas quando vistas em contrapicado.
XLVII. Mesmo os provérbios chineses pirosos estão cheios de sombras e ameaças.
XLVIII. A honestidade é um meio (ou um fim) que justifica as farsas.
XLIX. O amigo do carniceiro será um dia pendurado no talho.
L. O intelecto procura repouso nas coisas, como quem chega num dia tempestuso a um lar aconchegante.
LI. A virtude é a força da contemplação, é a manipulação da atenção.
LII. Os pensamentos nobres têm a sua gravidade, o seu peso interno, mas gostam de andar em bicos dos pés. Não necessitam de holofotes, porque isso só os tornaria vulneráveis. Surgem da espuma das ondas divinas, como algo burbulhante, arrastando oráculos desfeitos e fósseis de deuses pré-históricos.
LIII. As substâncias têm os seus acidentes. Toda a substância é acidental, e todos os acidentes se substancializam.
LIV. A mutabilidade não é necessáriamente mutilante, mas uma mutilação é sempre uma mutação.
LV. O pensamento dissimulado age como os amantes tímidos que amam incondicionalmente: tenta dizer e não dizer; ousa desmesuradamente, mas não é suficientemente explícito. Mesmo as entrelinhas que deixa para lêr são demasiado ambiguas. Onde é que quer chegar? Quer manter a aventura em suspenso? Consegue saír da toca das suas contradicções?
LVI. A elipse faz o desaparecimento geométrico das essências. É como uma cidade que perdeu o seu centro e que transpira de explendor nos subúrbios. O que parecia uma irremidável contracção, um gesto de puro pudor, resolve-se em contorcido exibicionismo, num gosto pela complexidade e pela expansão. A acção essêncial da elipse é a de propulsionar os efeitos que estavam em potência. A acção secundária é a de simular um desaparecimento que nunca se chega a dar. As atenções que dá ao vazio e ao nulo são o pretexto para recolher os ecos que chegam de todas as partes.
LVII. O homem é um abismo nú que gosta de se vestir.
LVIII. Para nos aproximarmos da nossa humanidade, temos começar por descascá-la.
LIX. A humildade é quase sempre uma estratégia de sublimação. É Jesus que o proclama quando diz que para se chegar ao reino dos céus devemos humilhar-nos como os meninos.
LX. A imprudência calculada... a gaffe como uma arte de dar nas vistas. Há também a falsa imprudência como uma espécie de estilo que serve para desfazer as aparências das prudências alheias dando um ar de naturalidade e de imprevisibilidade.
LXI. Pertencemos à lama, mas não sei muito bem porquê.
LXII. Os universais procuram refugiar-se nos pormenores.
LXIII. A beleza demonstra-se como um conjunto de axiomas que emergem do amor.
LXIV. Extrair a verdade como uma cárie.
LXV. Crisípo foi censurado por descrever as obscenidades sexuais entre os deuses. Mas a acção divina é quase sempre obscena. O inexplícito na acção tem um fundo repugnante. Ou atraente?
LXVI. O ornamento, e todo o tipo de adorno, tem uma razão mais forte que os conceitos, uma vez que emerge da natureza directamente, sem raciocínios fraudulentos. Podemos dizer que essa razão é táctil, como a atracção amorosa de uma pele. É pelo estilo que essa racionalidade táctil se manifesta. Para chegarmos a qualquer conteúdo temos que escarafunchar muito.
LXVII. Há um estilo directo, possante, curto, claro, sem rodeios. É nessa sobriedade estilistica que se fazem os apelos maís hipócritas. É um estilo doce como uma guerra. Ou rápido quanto uma revolução.
LXVIII. O caracol é discreto, não partilha a sua intimidade. Isso parece-nos òbvio.
LXIX. A conjugação de contrários torna o pensamento hermafrodita, mas não o seu pensador.
LXX. A impaciência confunde-se por vezes com a imbecilidade. O que é uma pena! A impaciência é a acção desacautulada de uma urgência. É a urgência somatizada. A impaciência faz mais e melhor obra que o labor paciênte, ruminado e polido. As imperfeições que são fruto da impaciência, assim como os derivados inacabamentos, agem como uma propensão que se mantém fresca com os séculos.
LXXI. Os séculos de ouro cultivaram com primor o pechisbeque.
LXXII. É na desatenção que os contornos singulares surgem mais nítidos.
LXXIII. Ele encontra satisfação na floresta de apelos das obras mais subterrâneas.
LXXIV. Devorar a natureza é estar com ela. É na degustação dos seus pastos que ela desvela a sua cruel mecânica.
LXXV. Tornar o corpo àgil é mais urgente e importante do que fazer o exame da consciência ou da inconsciência.
LXXVI. As obras de arte resultam de encenadas orgias entre as influências.
LXXVII.A civilidade é desdentada.
LXXVIII. Uma boa justificação para fazer falsas traduções é o prazer da «infidelidade conjugal».
LXXIX. Uma má justificação para fazer boas traduções é a da fidelidade ao autor, à obra acabada. As obras acabadas estão, enquanto acabadas, mortas. Necrófilia?
LXXX. Dar tempo ao tempo é útil para sarar feridas ou deixar-se morrer, mas é péssimo para convencer alguém.
LXXXI. Temos, logo à partida, de desconfiar da honestidade natural. A natureza nada tem de honesto. A honestidade a que nos podemos permitir é aquela em que nos apercebemos e disfrutamos dos limites do pensamento. Porquê? Porque os jogos de linguagem, e sobretudo aqueles que usam e abusam dos fantasmas conceptuais, se apoiam num ingénuo bluff – o de fazer corresponder as palavras aos actos e às coisas.
LXXXII.Ulisses é o heroi que lacrimeja. As suas lágrimas acabam por se confundir com as lágrimas dos desterrados em Babilónia dos autores dos Salmos. Ulisses chora porque todo o passado faz com que o presente seja um exílio.
LXXXIII. O bem presente também é um exílio, talvez o mais duro. Os herois épicos preferem a recordação dos males passados.
LXXXIV. A amizade é uma correspondência sem cartas. O amor torna-nos cativos de uma propensão elegiaca.
LXXXV. Os antigos não admitiam que qualquer coisa pudesse gerar o vazio, mas o vazio é o mais artificial dos produtos naturais.
LXXXVI. A ilustração mais fatal da mentira é o silêncio.
LXXXVII. Cala-te!... como todos os culpados.
LXXXVIII. Fecha os lábios, mas move a lingua por dentro.
LXXXIX. A vergonha faz-nos engulir muita coisa em seco.
XC. O mundo e a sua variedade são demasiado estreitos para a amplidão dos nossos ânseios. Mas o anseio não basta. Há uma cobardia no ânseio. Por isso há que rectificar a balbuciante ânsiedade com actos. Nem que sejam picarescos.
XCI. É na voz estridente que o mundo encontra um espelho à altura da sua equívoca glória.
XCII. Muitos andam agarrados às saias e saiotes da fortuna.
XCIII. Acomodava-se em provérbios cujas pernas estavam partidas.
XCIV. Amava a outra pátria por causa da estrutura musical do hino.
XCV. O fingimento é uma arte que tenta iludir a mortalidade com argumentos convincentes.
XCVI. É preferível morrer a aceitar a morte depressa.
XCVII. As sombras são monótonas e traiçoeiras? Ou gatos a trentarem sere pardos como a noite?
XCVIII. A escuridão é honesta na sua pretensão de ambiguidade e perigo. As formas do falso são tão quiméricas quanto as do paladar.
XCIX. É da verdadeira admiração que nascem as rupturas. As rupturas geram amizades.
C. A corda do fáquir leva a um céu de escorpiões.
CI. Coloca a mão no fogo até que o fogo se queime.
CII. As falácias indicam o caminho para as falésias. Ajudam a que nos desviemos delas.
CIII. A falácia é o felatio da lógica.
CIV. Falhei na dignidade, mas não falhei nos objectivos.
CV. A sua concisão era como o baixo continuo – dava alguma margem de manobra para improvisos.
CVI. Abraça a melancolia como um prelúdio de uma alegria maior.
CVII. O céu não tem cura, quanto mais a terra!
CVIII. O homem livre é o que destruiu a vontade de simular.
CIX. A alegria não precisa de ordem para se aguentar nas pernas.
CX. Os atributos dos povos a que pertencemos não são os nossos.
CXI. As tempestades do coração desfazem as soberanias mais consolidadas.
CXII. Um exercicio rende melhor graças às suas maneiras mais arrepiantes.
CXIII. Há algo de pernicioso nas alegorias que as torna mais frescas e saborosas.
CXIV. Ele retirava o freio às afeições para que elas carnavalassem.
CXV. Sucumbi à deliciosa tirania dos dissimulacros.
CXVI. A potência só se satisfaz através da polivalência.
CXVII. Corrigir os juízos é acrescentar-lhes perplexidade.
CXVIII. À lógica platónica do modelo/simulacro deve-se opor uma gramática de dissimulacros, uma contaminação mimética. As aparências ou estão em perpétua guerrilha ou em frívolo carnaval. Não são os modelos que geram as coisas, mas a interacção de multiplicidades que se dispõe como exércitos.
CXIX. A simulação é contraceptiva, disfarça a criatividade garantindo as aparências. A dissimulação é conceptiva, garante a criatividade disfarçando as aparências.
CXX. As coisas não querem ser vistas tal e qual como são. Daí a necessidade de máscaras e véus. Não que haja algo de realmente arrepiante debaixo das máscaras e dos véus. Antes pelo contrário. Mas as coisas querem ser vistas «disfarçadas», para sua protecção, para que não pereçam engolidas pelas outras coisas. Daí que a contrafacção do pensamento seja sempre estratégica e teatral.
CXXI. «Deslembro-me incertamente» – a memória é um hálito que não nos abandona, mas que nos enreda com uma distorcida cumplicidade. Não se pode simular o passado. Não o podemos representar nem o identificar com rigor. Não recordamos, só deslembramos. Desrememoração... Subanamnése... A falta de rigor do passado é compensada com as rigorosas memórias, com as imagens que lhe sobram como se fossem precisas evidências. Essas precisas evidências são representações maravilhosas, mas não passam de representações muito circumstânciais que falsificam a complexidade, as ambiguidades e a mutabilidade dos acontecimentos. Deslembrar é aprofundar a inextricável glória das recordações. É livrá-las do informe e dar-lhes caprichosos contornos.
CXXII. Os enigmas procuram ferir a mente com ferros em brasa.
CXXIII. A arte deve ser vista como a porta traseira pela qual podemos fugir dos dilemas trágicos a que parecemos estar condenados.
CXXIV. Escapa-te a toda a solicitude que te quer esmagar ou mesgulhar em sangue e lágrimas. Submete-te ao exílio como se este fosse o Paraíso.
CXXV. O cadáver disfarça os favores que o tempo e a vida concederam. Ignora-se que o cadáver assinala a maravilha que foi a vida e o nascimento, e as possibilidades não desperdiçadas.
CXXVI. No célebre discurso de Hamlet a incerteza pesa sobre a possibilidade da morte não poder ser uma consolação, uma tranquilização, um puro nada. A dúvida que recai sobre a morte é mais terrível do que as dúvidas, mais plausíveis, que nos assaltam na vida.
CXXVII. Há idades que favorecem a gentileza.
CXXVIII. Lá encontrarás as côres que te assombram, os vermelhos hipnotisantes, o azul consolador, o trágico púrpura, o açafrão efevrescente como a dança de Shiva Nataraja.
CXXIX. Pedes a beleza mortal, ou o doce tormento, mas o que te dão são palavrosas batalhas onde a inconstância dos sentimentos é salva por uma subterrânea música de harmonias sem freios.
CXXX. O grande sofista é òbviamente o demiurgo. Somos escravos da sua dança criativa. A nossa mão e os nossos pensamentos são perlongamentos das suas frenéticas decisões e indecisões. A dissimulação dá-se quer no microcosmo quer no macrocosmo.
CXXXI. A divindade vive do terror de nada ser fiável. É o último recurso das nossas esperanças. Entregamo-nos a ela como se quisessemos ser devorados pelo engano dos enganos.
CXXXII. O facto de ele ser versado no bom-gosto não o obrigava a fixar-se nesse paladar. Porquê? Porque o que ele pretendia era a variação, mais do que uma ética que lhe caísse no goto.
CXXXIII. É do talento que brotam as mais alegres calamidades.
CXXXIV. A sobriedade é um fato pendurado há já muito tempo no guarda-fatos.
CXXXV.Os epigramas tornam a amizade inquietante.
CXXXVI. Para o pensamento viver descansado precisa de uma almofada excelente.
CXXXVII. Pode-se mostrar algum desprezo para com a razão, mas não podemos ser insensíveis a conjunturas e raciocinios que nos permitam orientar e tomar decisões. A razão é aquilo que nos permite fazer projecções e projectos – um alicerce frágil, enganador, mas imprescindível.
CXXXVIII. É da impossibilidade do similar, e das analogias profundas, que faz nascer a convicção de que é o inidentificável (e não a diferença) que governa a natureza – a dissimulação no dissemelhante.
CXXXIX. Os simulacros parecem-se com lobos de dentes afiados. É a lógica da comunicação social. A nossa comunicação é associal ou dissocial?
CXL. A voluptuosidade rectifica as especulações.
CXLI. Uma notícia é apelativa graças ao seu teor de violência. Procuro extraír o apelo do não-apelo, a frágil crueldade da não-crueldade.
CXLII. Qualquer manifesto é um incitamento ao furor... se possível divino.
CXLIII. O tolo acredita que ele pode ser o artifíce de uma conduta prudente.
CXLIV. Nem na extremidade há ou haverá eternidade.
CXLV. Quem aposta no cavalo do inefável não deve abusar de metáforas dúbias.
CXLVI. É nos interstícios dessas metáforas dúbias que o inefável é pilhável!
CXLVII.A ruiva ravina das desordens...
CXLVIII. A monstruosidade é o adorno dissimulando o divino. O divino é o terror. O adorno apazigua-o como um aguaceiro sobre um incêndio.
CXLIX. Ninguém nasce de si mesmo – somos sincretismos genéticos filtrados por pastiches sociais.
CL. A medida do seu talento é inversamente proporcional à das suas penas.
CLI. Uma opinião superficial é mais maravilhosa do que uma filosofia com demasiadas profundesas.
CLII. A modernidade é a consolação do esquecimento.
CLIII. A moderação é uma cilada armada pelos inclementes.
CLIV. Para um pensamento andar sobre rodas precisa de ter bons pneus.
CLV. Ao prazer deve-se juntar um pouco de piri-piri.
CLVI. A tentação de ceder à ética do simulacro é a vontade de participar numa alienação insipida. É nesse género de sopa que a humanidade está caída.
CLVII. O amor é o melhor antídoto para o bom-senso.
CLVIII. O amor incendeia a retórica interior.
CLIX. O terrorismo é o alicerce dos estados.
CLX. Deitou fogo a todas as suas convicções e agora nem sequer encontra as suas cinzas.
CLXI. Ama o mundo como se este fosse um vaudeville. Era bom que fosse?
CLXII. As lágrimas são um cortês convite a suplícios bem maiores.
CLXIII. A sua afeição fazia progressos que me incomodavam.
CLXIV. O mal que o amor esconde acabará por florescer noutras primaveras.
CLXV. Um suspirar suave que é inimigo do espetáculo.
CLXVI. A ira move-se com os seus navios ao longo das margens da ambição.
CLXVII.Os naufragos da paixão acabam por ser recolhidos por inadevertidas criaturas.
CLXVIII. ...manietar o pudor...
CLXIX. A ira pode render melhor quando estimulada pela vingança.
CLXX. Os amantes ventilam desejos insatisfeitos.
CLXXI. A mente precisa de tempestades para se regenerar.
CLXXII.O estilo desprezante disfarça a doçura. O romancista que trata mal as suas adoradas criaturas fá-lo por excessivo pudor – é a forma dilacerada de dizer que as ama. Mas também é uma demonstração de inveja. Ele sabe que elas o abandonarão e que lhe sobreviverão nas perversas mãos dos inquietos leitores.
CLXXIII. Um erro evidente para todos será bem disfarçado se assumido com lata e humor.
CLXXIV. O conhecimento é uma bomba retardada.
CLXXV. Pitagoras ensinou-nos a fazer crochet com rigor geométrico.
CLXXVI. As palavras ressoam e compõe-se por simpatia, como as cordas de determinados instrumentos.
CLXXVII. Há os conceitos que geram, há os que são primogénitos, e finalmente os bastardos. Estes pertencem a essa espécie que escapa às heranças e que não se reconhece nas juridisções.
CLXXVIII. A lingua coze-se no seu lume e move-se no seu leme.
CLXXIX. Há momentos em que os detalhes são mais importantes que o negócio.
CLXXX. Sem desprazer o teatro do mundo seria de um tédio confrangedor. Por isso se buscam os trágicos sofrimentos como salada de emoções. Mais do que espectador, o homem procura ser uma besta que age para teatralizar as descargas de adrenalina e encenar as canalhices do poder.
CLXXXI. Há um lado pulha nas mutações e de que não devemos descurar.
CLXXXII. Os deuses organizam a sua autoridade, o seu prestígio e a sua acção através de proibições demasiado evidentes. Um verdadeiro deus organizaria a sua teia de poder pelo meio de regras icogniscíveis.
CLXXXIII. É difícil escapar quer à hipocrisia da modéstia quer à da glória. Só na hipocrisia assumida não há excessiva hipocrisia.
CLXXXIV. O vento corre a favor das aparências sinistras.
CLXXXV. O que me agrada no catolicismo post-tridentino é a magnifica consciência da estrutura hipócrita da igreja (que acaba por ter algo de extraordináriamente salutar) contrastada com a outra hipocrisia, não-assumida, higienista e tanática dos protestantismos mais radicais. Há uma militância pela metáfora, pela carne, pelo rito que é tudo menos «ética», mas que é mais ética do que a ética e mais forte que a lógica de Deus.
CLXXXVI. A glória vende-se e a excelência corrompe-se. A própria posteridade, apesar dos carimbos de garantia, é caprichosa. Se as conjunturas do presente não nos oferecem as mínimas garantias, porque é que as hão de oferecer as do futuro?
CLXXXVII. Era um devorador do aplauso devido à sua inconsequente exaltação.
CLXXXVIII. Poucos são os que buscam excelência e muitos os que se entretêm a espetar facas. Estas desventuras são banais tal como a sua constatação. Mas as facadas não se espetam na excelência, por mais que a consigam ocultar.
CLXXXIX. Há homens que se enterram nas suas próprias revelações.
CXC. Suspeitamos que cada criatura tem uma sabedoria (ou várias) que a procura e que se lhe ajusta, e que as sabedorias e remédios para todos são mais assassinas que os canibais.
CXCI. Disfarçava as virtudes como quem faz um atalho para si mesmo.
CXCII. A necessidade da estrela não é a mesma do camelo.
CXCIII. A maioria das vezes a mais bela das ordens ofende a vista.
CXCIV. Os ornamentos inactivos são ferramentas da espontaneidade.
CXCV. A tirania procura leis para poder respirar.
CXCVI. A opressão não é apenas um jogo de forças social ou político, mas um estado de ar no peito.
CXCVII. Slogans tristes como suspiros.
CXCVIII. Devemos distinguir as injúrias obscuras das injúrias caras-pálidas.
CXCIX. Os homens saciam-se na desonra e desonram-se na saciedade.
CC. Uma ética decente, por mais vaga que seja, tem que alicerçar-se na exclusão do máximo de crueldade.
CCI. O reprimido desejo de vingança tornava-o um repugnante tolerante.
CCII. As suas convicções eram opiniões de coreto ou de corista.
CCIII. Ele precepitava-se no perdão. Literalmente: na impostura.
CCIV. A dor tem divinas proporções, mas tem que se aguentar.
CCV. Á medida que ia perdendo inocência ia ganhando ingenuidade.
CCVI. O que a natureza esconde no coração não se consegue colocar debaixo de um colchão.
CCVII. Usa a incerteza como bengala da sabedoria.
CCVIII. O predador tanto caça na selva como no templo.
CCIX. As obras mais sublimes não têm pudor em mostrar as suas partes traseiras.
CCX. A indignação mutila com garantida rapidez a beleza dos indignados.
CCXI. Os antepassados dissimulam-se na inacessibilidade que lhes dá o tempo.
CCXII. Os afectos são organização crescente que nos afecta suavemente.
CCXIII. A feliz culpa não chega para desculpar as infelizes desculpas.
CCXIV. A pele é um excelente disfarce para uma rameira.
CCXV. As trevas deviam ser de quatro folhas.
CCXVI. Uma confissão só se absolve pela confiânça na confidência.
CCXVII. Desembaraça-te do teu passado como de uma guerra civil.
CCXVIII. Era advogado, não de um diabo, mas de uma tribo deles.
CCXIX. Tinha a essência divina mesmo à sua frente mas era demasiado míope para a ver.
CCXX. Quando o coração se torna transparente a pele fica mais morena.
CCXXI. Alourava-se nos refugados. Ou na àgua oxigenada? Nem tudo o que luz é...
CCXXII. Através da dissimulação remanescem os paraísos.
CCXXIII. Mascaramo-nos de libertinos para o prazer de Deus?
(Renato Ornato)
XV. Os cautelosos vivos soem-se acompanhar de um pensamento polivalente, de harmonias estridentes, que não saem nem da lingua nem dos dentes. Os incautos deixam-se cegar pelas mirambolantes maravilhas que enchem e ecoam no céu e na terra, como presas para a persuasão devoradora.
XVI. O prazer arma as suas tendas. Aqueles que se deixam tragar na guerra dos simulacros ignoram do autêntico prazer a indecência e o pudor, e a forma como os astros favorecem os animais que em tudo dissimulam.
XVII. Os homens procuram a justiça como uma bomba que defraude os encantamentos.
XVIII. Mas a vida não passa de má montagem cinematográfica. Tal como os sonhos e todas as bizarrias psicológicas.
XIX. Ele viu os cedros como uma concisão absoluta, como a gramática do extase.
XX. E a minha amada era um alvo honesto cheio de floridas evidências.
XXI. E disfarçava na beleza as maneiras violentas que lhe assomavam no peito.
XXII. Emudecia, como quem tolera o silêncio.
XXIII. Percepitava-se na contemplação com uma suave sapiência.
XXIV. Todas as estradas são precepícios.
XXV. A vaidade não procura quem a aconselhe. Tudo é vaidade, sobretudo os deuses, as metafísicas e a fuga das garras suaves da vaidade. Encontrarás vaidades intelectuais, namoros com o Demiurgo, orgulho no ascetismo.
XXVI. A verdadeira cognição não precisa de etapas. Vai direito ao assunto. As etapas podem ser vírgulas ou pontos de exclamação quando o caminho é longo.
XXVII. Estarás sempre em desvantagem – essa é a tua vantagem.
XXVIII. O sujeito é um negócio. É o indivíduo enquanto transacção de máscaras sociais. É o movimento das dificuldades íntimas. É um subterfúgio que procura na encenação dos gestos uma maneira extravagante.
XXIX. Se puseres nas palavras as pequenas coisas não darás a entender que a tua ambição procura ter filhos.
XXX. A intencionalidade é algo decisivamente selvagem.
XXXI. As cicatrizes são julgamentos que recaiem sobre os outros. As feridas desculpam-nos. Mesmo quando não são convicentes.
XXXII. Adiar uma coisa como se a reduzissemos a zero.
XXXIII. Será preferivel emendar ou liquidar?
XXXIV. A dissimulação parece uma diminuição para o vulgo. Trata-se, no entanto, de providenciar os aumentos, de dar fôlego à potenciação.
XXXV. O que escrevo é para arrasar a minha vontade. Mas ela sabe resistir.
XXXVI. O gosto do público é uma má esperança e uma desastrosa consolação.
XXXVII. A nudez mitológica de Adão e Eva é que encena a fraude – a criatura que se veste é uma simuladora. A pele edénica é uma máscara. Uma máscara inocente. É só através da censura sexual que as partes baixas se tornam obscenas.
XXXVIII. A descoberta do pudor é apresentada como uma tragédia, como o nascimento da culpa, mas este texto biblico está destituído das violências fundadoras e dos rituais de sangue que lhe seguirão. A culpa surge num ambiente de comédia brejeira, e será difícil não desculpar criaturas tão naifs que cometem uma infração tão ligeira quanto o provar um fruto proíbido (a quem se destinaria tal fruto?). A severidade da punição é desproporcional, e o Criador também tem a sua quota-parte de responsabilidade neste argumento de opereta.
XXXIX. A simulação começa na roupa, no vestir, na puritanização. A simulação institui a pornografia. A diferença entre pornografia e fotografia é irrisória. É na pornografia e na fotografia que o Mal se exacerba como hipotética transgressão, como reedição da culpa, e entrega masoquista à exploração desse sentimento complexo. O prazer da transgressão é, de certa forma, um exebicionismo para «Deus», uma espécie de acusação, uma delirante adulação.
XL. A confortável neblina da mentira...
XLI. Muitos excluem-se da redoma social para se consagrarem às cadências do romanesco.
XLII. As canduras voltam a adocicar os venenos.
XLIII. Há momentos em que as infelizes contradições se tornam divinas.
XLIV. Cada época procura industriosos argumentos. A desordem proporciona-os.
XLV. O significado é uma ponte entre uma opinião maliciosa e um acolhimento cínico.
XLVI. As verdades até acabam por ser bonitas quando vistas em contrapicado.
XLVII. Mesmo os provérbios chineses pirosos estão cheios de sombras e ameaças.
XLVIII. A honestidade é um meio (ou um fim) que justifica as farsas.
XLIX. O amigo do carniceiro será um dia pendurado no talho.
L. O intelecto procura repouso nas coisas, como quem chega num dia tempestuso a um lar aconchegante.
LI. A virtude é a força da contemplação, é a manipulação da atenção.
LII. Os pensamentos nobres têm a sua gravidade, o seu peso interno, mas gostam de andar em bicos dos pés. Não necessitam de holofotes, porque isso só os tornaria vulneráveis. Surgem da espuma das ondas divinas, como algo burbulhante, arrastando oráculos desfeitos e fósseis de deuses pré-históricos.
LIII. As substâncias têm os seus acidentes. Toda a substância é acidental, e todos os acidentes se substancializam.
LIV. A mutabilidade não é necessáriamente mutilante, mas uma mutilação é sempre uma mutação.
LV. O pensamento dissimulado age como os amantes tímidos que amam incondicionalmente: tenta dizer e não dizer; ousa desmesuradamente, mas não é suficientemente explícito. Mesmo as entrelinhas que deixa para lêr são demasiado ambiguas. Onde é que quer chegar? Quer manter a aventura em suspenso? Consegue saír da toca das suas contradicções?
LVI. A elipse faz o desaparecimento geométrico das essências. É como uma cidade que perdeu o seu centro e que transpira de explendor nos subúrbios. O que parecia uma irremidável contracção, um gesto de puro pudor, resolve-se em contorcido exibicionismo, num gosto pela complexidade e pela expansão. A acção essêncial da elipse é a de propulsionar os efeitos que estavam em potência. A acção secundária é a de simular um desaparecimento que nunca se chega a dar. As atenções que dá ao vazio e ao nulo são o pretexto para recolher os ecos que chegam de todas as partes.
LVII. O homem é um abismo nú que gosta de se vestir.
LVIII. Para nos aproximarmos da nossa humanidade, temos começar por descascá-la.
LIX. A humildade é quase sempre uma estratégia de sublimação. É Jesus que o proclama quando diz que para se chegar ao reino dos céus devemos humilhar-nos como os meninos.
LX. A imprudência calculada... a gaffe como uma arte de dar nas vistas. Há também a falsa imprudência como uma espécie de estilo que serve para desfazer as aparências das prudências alheias dando um ar de naturalidade e de imprevisibilidade.
LXI. Pertencemos à lama, mas não sei muito bem porquê.
LXII. Os universais procuram refugiar-se nos pormenores.
LXIII. A beleza demonstra-se como um conjunto de axiomas que emergem do amor.
LXIV. Extrair a verdade como uma cárie.
LXV. Crisípo foi censurado por descrever as obscenidades sexuais entre os deuses. Mas a acção divina é quase sempre obscena. O inexplícito na acção tem um fundo repugnante. Ou atraente?
LXVI. O ornamento, e todo o tipo de adorno, tem uma razão mais forte que os conceitos, uma vez que emerge da natureza directamente, sem raciocínios fraudulentos. Podemos dizer que essa razão é táctil, como a atracção amorosa de uma pele. É pelo estilo que essa racionalidade táctil se manifesta. Para chegarmos a qualquer conteúdo temos que escarafunchar muito.
LXVII. Há um estilo directo, possante, curto, claro, sem rodeios. É nessa sobriedade estilistica que se fazem os apelos maís hipócritas. É um estilo doce como uma guerra. Ou rápido quanto uma revolução.
LXVIII. O caracol é discreto, não partilha a sua intimidade. Isso parece-nos òbvio.
LXIX. A conjugação de contrários torna o pensamento hermafrodita, mas não o seu pensador.
LXX. A impaciência confunde-se por vezes com a imbecilidade. O que é uma pena! A impaciência é a acção desacautulada de uma urgência. É a urgência somatizada. A impaciência faz mais e melhor obra que o labor paciênte, ruminado e polido. As imperfeições que são fruto da impaciência, assim como os derivados inacabamentos, agem como uma propensão que se mantém fresca com os séculos.
LXXI. Os séculos de ouro cultivaram com primor o pechisbeque.
LXXII. É na desatenção que os contornos singulares surgem mais nítidos.
LXXIII. Ele encontra satisfação na floresta de apelos das obras mais subterrâneas.
LXXIV. Devorar a natureza é estar com ela. É na degustação dos seus pastos que ela desvela a sua cruel mecânica.
LXXV. Tornar o corpo àgil é mais urgente e importante do que fazer o exame da consciência ou da inconsciência.
LXXVI. As obras de arte resultam de encenadas orgias entre as influências.
LXXVII.A civilidade é desdentada.
LXXVIII. Uma boa justificação para fazer falsas traduções é o prazer da «infidelidade conjugal».
LXXIX. Uma má justificação para fazer boas traduções é a da fidelidade ao autor, à obra acabada. As obras acabadas estão, enquanto acabadas, mortas. Necrófilia?
LXXX. Dar tempo ao tempo é útil para sarar feridas ou deixar-se morrer, mas é péssimo para convencer alguém.
LXXXI. Temos, logo à partida, de desconfiar da honestidade natural. A natureza nada tem de honesto. A honestidade a que nos podemos permitir é aquela em que nos apercebemos e disfrutamos dos limites do pensamento. Porquê? Porque os jogos de linguagem, e sobretudo aqueles que usam e abusam dos fantasmas conceptuais, se apoiam num ingénuo bluff – o de fazer corresponder as palavras aos actos e às coisas.
LXXXII.Ulisses é o heroi que lacrimeja. As suas lágrimas acabam por se confundir com as lágrimas dos desterrados em Babilónia dos autores dos Salmos. Ulisses chora porque todo o passado faz com que o presente seja um exílio.
LXXXIII. O bem presente também é um exílio, talvez o mais duro. Os herois épicos preferem a recordação dos males passados.
LXXXIV. A amizade é uma correspondência sem cartas. O amor torna-nos cativos de uma propensão elegiaca.
LXXXV. Os antigos não admitiam que qualquer coisa pudesse gerar o vazio, mas o vazio é o mais artificial dos produtos naturais.
LXXXVI. A ilustração mais fatal da mentira é o silêncio.
LXXXVII. Cala-te!... como todos os culpados.
LXXXVIII. Fecha os lábios, mas move a lingua por dentro.
LXXXIX. A vergonha faz-nos engulir muita coisa em seco.
XC. O mundo e a sua variedade são demasiado estreitos para a amplidão dos nossos ânseios. Mas o anseio não basta. Há uma cobardia no ânseio. Por isso há que rectificar a balbuciante ânsiedade com actos. Nem que sejam picarescos.
XCI. É na voz estridente que o mundo encontra um espelho à altura da sua equívoca glória.
XCII. Muitos andam agarrados às saias e saiotes da fortuna.
XCIII. Acomodava-se em provérbios cujas pernas estavam partidas.
XCIV. Amava a outra pátria por causa da estrutura musical do hino.
XCV. O fingimento é uma arte que tenta iludir a mortalidade com argumentos convincentes.
XCVI. É preferível morrer a aceitar a morte depressa.
XCVII. As sombras são monótonas e traiçoeiras? Ou gatos a trentarem sere pardos como a noite?
XCVIII. A escuridão é honesta na sua pretensão de ambiguidade e perigo. As formas do falso são tão quiméricas quanto as do paladar.
XCIX. É da verdadeira admiração que nascem as rupturas. As rupturas geram amizades.
C. A corda do fáquir leva a um céu de escorpiões.
CI. Coloca a mão no fogo até que o fogo se queime.
CII. As falácias indicam o caminho para as falésias. Ajudam a que nos desviemos delas.
CIII. A falácia é o felatio da lógica.
CIV. Falhei na dignidade, mas não falhei nos objectivos.
CV. A sua concisão era como o baixo continuo – dava alguma margem de manobra para improvisos.
CVI. Abraça a melancolia como um prelúdio de uma alegria maior.
CVII. O céu não tem cura, quanto mais a terra!
CVIII. O homem livre é o que destruiu a vontade de simular.
CIX. A alegria não precisa de ordem para se aguentar nas pernas.
CX. Os atributos dos povos a que pertencemos não são os nossos.
CXI. As tempestades do coração desfazem as soberanias mais consolidadas.
CXII. Um exercicio rende melhor graças às suas maneiras mais arrepiantes.
CXIII. Há algo de pernicioso nas alegorias que as torna mais frescas e saborosas.
CXIV. Ele retirava o freio às afeições para que elas carnavalassem.
CXV. Sucumbi à deliciosa tirania dos dissimulacros.
CXVI. A potência só se satisfaz através da polivalência.
CXVII. Corrigir os juízos é acrescentar-lhes perplexidade.
CXVIII. À lógica platónica do modelo/simulacro deve-se opor uma gramática de dissimulacros, uma contaminação mimética. As aparências ou estão em perpétua guerrilha ou em frívolo carnaval. Não são os modelos que geram as coisas, mas a interacção de multiplicidades que se dispõe como exércitos.
CXIX. A simulação é contraceptiva, disfarça a criatividade garantindo as aparências. A dissimulação é conceptiva, garante a criatividade disfarçando as aparências.
CXX. As coisas não querem ser vistas tal e qual como são. Daí a necessidade de máscaras e véus. Não que haja algo de realmente arrepiante debaixo das máscaras e dos véus. Antes pelo contrário. Mas as coisas querem ser vistas «disfarçadas», para sua protecção, para que não pereçam engolidas pelas outras coisas. Daí que a contrafacção do pensamento seja sempre estratégica e teatral.
CXXI. «Deslembro-me incertamente» – a memória é um hálito que não nos abandona, mas que nos enreda com uma distorcida cumplicidade. Não se pode simular o passado. Não o podemos representar nem o identificar com rigor. Não recordamos, só deslembramos. Desrememoração... Subanamnése... A falta de rigor do passado é compensada com as rigorosas memórias, com as imagens que lhe sobram como se fossem precisas evidências. Essas precisas evidências são representações maravilhosas, mas não passam de representações muito circumstânciais que falsificam a complexidade, as ambiguidades e a mutabilidade dos acontecimentos. Deslembrar é aprofundar a inextricável glória das recordações. É livrá-las do informe e dar-lhes caprichosos contornos.
CXXII. Os enigmas procuram ferir a mente com ferros em brasa.
CXXIII. A arte deve ser vista como a porta traseira pela qual podemos fugir dos dilemas trágicos a que parecemos estar condenados.
CXXIV. Escapa-te a toda a solicitude que te quer esmagar ou mesgulhar em sangue e lágrimas. Submete-te ao exílio como se este fosse o Paraíso.
CXXV. O cadáver disfarça os favores que o tempo e a vida concederam. Ignora-se que o cadáver assinala a maravilha que foi a vida e o nascimento, e as possibilidades não desperdiçadas.
CXXVI. No célebre discurso de Hamlet a incerteza pesa sobre a possibilidade da morte não poder ser uma consolação, uma tranquilização, um puro nada. A dúvida que recai sobre a morte é mais terrível do que as dúvidas, mais plausíveis, que nos assaltam na vida.
CXXVII. Há idades que favorecem a gentileza.
CXXVIII. Lá encontrarás as côres que te assombram, os vermelhos hipnotisantes, o azul consolador, o trágico púrpura, o açafrão efevrescente como a dança de Shiva Nataraja.
CXXIX. Pedes a beleza mortal, ou o doce tormento, mas o que te dão são palavrosas batalhas onde a inconstância dos sentimentos é salva por uma subterrânea música de harmonias sem freios.
CXXX. O grande sofista é òbviamente o demiurgo. Somos escravos da sua dança criativa. A nossa mão e os nossos pensamentos são perlongamentos das suas frenéticas decisões e indecisões. A dissimulação dá-se quer no microcosmo quer no macrocosmo.
CXXXI. A divindade vive do terror de nada ser fiável. É o último recurso das nossas esperanças. Entregamo-nos a ela como se quisessemos ser devorados pelo engano dos enganos.
CXXXII. O facto de ele ser versado no bom-gosto não o obrigava a fixar-se nesse paladar. Porquê? Porque o que ele pretendia era a variação, mais do que uma ética que lhe caísse no goto.
CXXXIII. É do talento que brotam as mais alegres calamidades.
CXXXIV. A sobriedade é um fato pendurado há já muito tempo no guarda-fatos.
CXXXV.Os epigramas tornam a amizade inquietante.
CXXXVI. Para o pensamento viver descansado precisa de uma almofada excelente.
CXXXVII. Pode-se mostrar algum desprezo para com a razão, mas não podemos ser insensíveis a conjunturas e raciocinios que nos permitam orientar e tomar decisões. A razão é aquilo que nos permite fazer projecções e projectos – um alicerce frágil, enganador, mas imprescindível.
CXXXVIII. É da impossibilidade do similar, e das analogias profundas, que faz nascer a convicção de que é o inidentificável (e não a diferença) que governa a natureza – a dissimulação no dissemelhante.
CXXXIX. Os simulacros parecem-se com lobos de dentes afiados. É a lógica da comunicação social. A nossa comunicação é associal ou dissocial?
CXL. A voluptuosidade rectifica as especulações.
CXLI. Uma notícia é apelativa graças ao seu teor de violência. Procuro extraír o apelo do não-apelo, a frágil crueldade da não-crueldade.
CXLII. Qualquer manifesto é um incitamento ao furor... se possível divino.
CXLIII. O tolo acredita que ele pode ser o artifíce de uma conduta prudente.
CXLIV. Nem na extremidade há ou haverá eternidade.
CXLV. Quem aposta no cavalo do inefável não deve abusar de metáforas dúbias.
CXLVI. É nos interstícios dessas metáforas dúbias que o inefável é pilhável!
CXLVII.A ruiva ravina das desordens...
CXLVIII. A monstruosidade é o adorno dissimulando o divino. O divino é o terror. O adorno apazigua-o como um aguaceiro sobre um incêndio.
CXLIX. Ninguém nasce de si mesmo – somos sincretismos genéticos filtrados por pastiches sociais.
CL. A medida do seu talento é inversamente proporcional à das suas penas.
CLI. Uma opinião superficial é mais maravilhosa do que uma filosofia com demasiadas profundesas.
CLII. A modernidade é a consolação do esquecimento.
CLIII. A moderação é uma cilada armada pelos inclementes.
CLIV. Para um pensamento andar sobre rodas precisa de ter bons pneus.
CLV. Ao prazer deve-se juntar um pouco de piri-piri.
CLVI. A tentação de ceder à ética do simulacro é a vontade de participar numa alienação insipida. É nesse género de sopa que a humanidade está caída.
CLVII. O amor é o melhor antídoto para o bom-senso.
CLVIII. O amor incendeia a retórica interior.
CLIX. O terrorismo é o alicerce dos estados.
CLX. Deitou fogo a todas as suas convicções e agora nem sequer encontra as suas cinzas.
CLXI. Ama o mundo como se este fosse um vaudeville. Era bom que fosse?
CLXII. As lágrimas são um cortês convite a suplícios bem maiores.
CLXIII. A sua afeição fazia progressos que me incomodavam.
CLXIV. O mal que o amor esconde acabará por florescer noutras primaveras.
CLXV. Um suspirar suave que é inimigo do espetáculo.
CLXVI. A ira move-se com os seus navios ao longo das margens da ambição.
CLXVII.Os naufragos da paixão acabam por ser recolhidos por inadevertidas criaturas.
CLXVIII. ...manietar o pudor...
CLXIX. A ira pode render melhor quando estimulada pela vingança.
CLXX. Os amantes ventilam desejos insatisfeitos.
CLXXI. A mente precisa de tempestades para se regenerar.
CLXXII.O estilo desprezante disfarça a doçura. O romancista que trata mal as suas adoradas criaturas fá-lo por excessivo pudor – é a forma dilacerada de dizer que as ama. Mas também é uma demonstração de inveja. Ele sabe que elas o abandonarão e que lhe sobreviverão nas perversas mãos dos inquietos leitores.
CLXXIII. Um erro evidente para todos será bem disfarçado se assumido com lata e humor.
CLXXIV. O conhecimento é uma bomba retardada.
CLXXV. Pitagoras ensinou-nos a fazer crochet com rigor geométrico.
CLXXVI. As palavras ressoam e compõe-se por simpatia, como as cordas de determinados instrumentos.
CLXXVII. Há os conceitos que geram, há os que são primogénitos, e finalmente os bastardos. Estes pertencem a essa espécie que escapa às heranças e que não se reconhece nas juridisções.
CLXXVIII. A lingua coze-se no seu lume e move-se no seu leme.
CLXXIX. Há momentos em que os detalhes são mais importantes que o negócio.
CLXXX. Sem desprazer o teatro do mundo seria de um tédio confrangedor. Por isso se buscam os trágicos sofrimentos como salada de emoções. Mais do que espectador, o homem procura ser uma besta que age para teatralizar as descargas de adrenalina e encenar as canalhices do poder.
CLXXXI. Há um lado pulha nas mutações e de que não devemos descurar.
CLXXXII. Os deuses organizam a sua autoridade, o seu prestígio e a sua acção através de proibições demasiado evidentes. Um verdadeiro deus organizaria a sua teia de poder pelo meio de regras icogniscíveis.
CLXXXIII. É difícil escapar quer à hipocrisia da modéstia quer à da glória. Só na hipocrisia assumida não há excessiva hipocrisia.
CLXXXIV. O vento corre a favor das aparências sinistras.
CLXXXV. O que me agrada no catolicismo post-tridentino é a magnifica consciência da estrutura hipócrita da igreja (que acaba por ter algo de extraordináriamente salutar) contrastada com a outra hipocrisia, não-assumida, higienista e tanática dos protestantismos mais radicais. Há uma militância pela metáfora, pela carne, pelo rito que é tudo menos «ética», mas que é mais ética do que a ética e mais forte que a lógica de Deus.
CLXXXVI. A glória vende-se e a excelência corrompe-se. A própria posteridade, apesar dos carimbos de garantia, é caprichosa. Se as conjunturas do presente não nos oferecem as mínimas garantias, porque é que as hão de oferecer as do futuro?
CLXXXVII. Era um devorador do aplauso devido à sua inconsequente exaltação.
CLXXXVIII. Poucos são os que buscam excelência e muitos os que se entretêm a espetar facas. Estas desventuras são banais tal como a sua constatação. Mas as facadas não se espetam na excelência, por mais que a consigam ocultar.
CLXXXIX. Há homens que se enterram nas suas próprias revelações.
CXC. Suspeitamos que cada criatura tem uma sabedoria (ou várias) que a procura e que se lhe ajusta, e que as sabedorias e remédios para todos são mais assassinas que os canibais.
CXCI. Disfarçava as virtudes como quem faz um atalho para si mesmo.
CXCII. A necessidade da estrela não é a mesma do camelo.
CXCIII. A maioria das vezes a mais bela das ordens ofende a vista.
CXCIV. Os ornamentos inactivos são ferramentas da espontaneidade.
CXCV. A tirania procura leis para poder respirar.
CXCVI. A opressão não é apenas um jogo de forças social ou político, mas um estado de ar no peito.
CXCVII. Slogans tristes como suspiros.
CXCVIII. Devemos distinguir as injúrias obscuras das injúrias caras-pálidas.
CXCIX. Os homens saciam-se na desonra e desonram-se na saciedade.
CC. Uma ética decente, por mais vaga que seja, tem que alicerçar-se na exclusão do máximo de crueldade.
CCI. O reprimido desejo de vingança tornava-o um repugnante tolerante.
CCII. As suas convicções eram opiniões de coreto ou de corista.
CCIII. Ele precepitava-se no perdão. Literalmente: na impostura.
CCIV. A dor tem divinas proporções, mas tem que se aguentar.
CCV. Á medida que ia perdendo inocência ia ganhando ingenuidade.
CCVI. O que a natureza esconde no coração não se consegue colocar debaixo de um colchão.
CCVII. Usa a incerteza como bengala da sabedoria.
CCVIII. O predador tanto caça na selva como no templo.
CCIX. As obras mais sublimes não têm pudor em mostrar as suas partes traseiras.
CCX. A indignação mutila com garantida rapidez a beleza dos indignados.
CCXI. Os antepassados dissimulam-se na inacessibilidade que lhes dá o tempo.
CCXII. Os afectos são organização crescente que nos afecta suavemente.
CCXIII. A feliz culpa não chega para desculpar as infelizes desculpas.
CCXIV. A pele é um excelente disfarce para uma rameira.
CCXV. As trevas deviam ser de quatro folhas.
CCXVI. Uma confissão só se absolve pela confiânça na confidência.
CCXVII. Desembaraça-te do teu passado como de uma guerra civil.
CCXVIII. Era advogado, não de um diabo, mas de uma tribo deles.
CCXIX. Tinha a essência divina mesmo à sua frente mas era demasiado míope para a ver.
CCXX. Quando o coração se torna transparente a pele fica mais morena.
CCXXI. Alourava-se nos refugados. Ou na àgua oxigenada? Nem tudo o que luz é...
CCXXII. Através da dissimulação remanescem os paraísos.
CCXXIII. Mascaramo-nos de libertinos para o prazer de Deus?
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