Monday, December 17, 2007

savinio dadaísta (1) - UM VÓMITO MUSICAL

Se há música de espirito dadaísta é a de Savinio... mas antes do dadaísmo! No entanto Savinio colaborou em dois numeros da revista DADA. Traduzimos a sua colaboração no nº1




UM VÓMITO MÚSICAL

Embora educado na galanteria
signor jocundo, e
sempre delle donne... perfecto amicho
savio e cortese piú che bella dama
,
ainda não consigo reter os soluços da mais imperiosa nausea sempre que me encontro num tu-cá tu-lá com Euterpe. O meu estomago ainda é recalcitrante à companhia dessa representação figurativa da arte dos sons cuja mera presença provoca nas minhas visceras os mesmos efeitos e consequências que o arfanço mais chalupa da vacilação-vertigem da nossa infância.

Frequentemente caímos em engano no que diz respeito à pintura e poesia: mas quanto à música enganamo-nos sempre.
O seu desenvolvimento tardio deu-se posteriormente ao de ambos os outros. Apesar desse generoso handicap ela ultrapassou os parceiros dianteiros e chegou, como numa poltrona, ao mastro da estupidez total e do vasto malentendido.
Entre os praticantes-de-musica nunca se destacou uma mente clarividente.
Senza il menomo madore d’affetazione eu confesso uma natural aversão no que diz respeito ao mundo cromático.
Graças a um treino intenso, consigo resistir, no entanto, a toda a tilintação que tenha por origem um acorde ou uma melodia.
Tudo o que trate dessa arte decrépita e malfeitora me mergulha na mais mesquinha das tristezas.
Agradam-me todo o género de leituras, mas uma “História da Musica” obriga-me a um penoso esforço. Eu coro ao ver-me colocado no vesgo tableau-vivant dos fazedores de bemol.
Num entardecer, antes de me deitar, ao ter imprudentemente aberto um livro de musica insinuou-se-me um tipo de humor sereno que me é indispensável nessa hora solitária e preciosa entre todas, o que proporcionou, durante o sono que lhe sucedeu, uma série de sonhos obscenos e de uma miséria angustiante. E assim retive a experiência, e desde então, se tenho que me ocupar de sustenidos, sacrifico as horas medianas da jornada: fico assim com o tempo de me rebocar, através de alguma ocupação distrainte e de pensamentos reparadores.
Tal qual é, a musica é uma arte insensata e imoral: exemplo de perversidade burguesa: arte à disposição de todos os vícios.
Mais odiosa e mais pegajosa que a piedade, ela acolhe nos seus braços não só a viuva e o orfão, mas multidões inteiras de renegados e de amaldiçoados.
Consolação nauseante para uso de tarados, de todos aqueles que levam um peso sobre a consciência, que têm um cancro na alma, de todos os submissos e condenados de nascença.
Arte que dá graxa e encoraja os piores instintos da multidão: espelho impudico de toda a obscenidade de um mundo sem leis nem moral.
Sublinharia dois episódios da minha vida que me provocaram o mais intenso e inexprimivel desgosto: o primeiro prende-se à minha infância, ao dia em que sob a instigação de um ajudante de cozinha sanguinário e brincalhão serrei o pescoço a um pato; o segundo diz respeito à minha adolescência, numa tarde em que sob o empurrão de um alemão melomano assistia a uma espécie de orgia teatral onde as torpezas sonoras do Sr. Richard Strauss tinham espaço de deboche.
No ponto em que ela está de sobremaneira presente, a musica é um insulto à dignidade de todo o tipo de cidadão, aristocrata, burgês ou proletário, seja ele pouco honesto e asseado nos seus lençois, assim quanto nos seus afazeres.
O charme da harmonia é o mais grave atentado à honra do homem livre. Entre as principais causas da criminalidade pela degenerescência devemos colocar em primeiro lugar a música; bem antes do alcoolismo.
As populações densas de idiotas, ignorantes, nojentos, doentes, degenerados, entram no Templo da Música como em casa. Eles encontram-se de facto completamente em casa, uma vez que aí se celebra um culto à mão de semear de todas as mais repugnantes misérias do espírito: é a Assintência Social para todas as rejeições da humanidade.
No tempo em que, desprevenido, me entregava imprudentemente aos enlaces dessa luxuria popularucha – caramba, pouquissimos são os anos que me separem dessa tristissima época! – experimentava infalivelmente penosas reacções. Era molestado por remorsos – e nem sequer tinha dormido com Aspasia! – Repreendia-me, sentia-me culpado, agachava-me sob o peso do meu pecado. Com o rictus de bestialidade libidinosa apagado da minha face abismava-me na tristeza, curvava a cabeça e dobrava os rins, como a besta que acabou de foder.
Post coitum animal triste est!

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