Sunday, April 26, 2009

Alvaro lapa - in confidências para o exílio



Em Novembro de 1994 o Miguel Von Hafe Pérez fez publicar nas "Confidências para o exílio" um velho texto do Álvaro Lapa saído no Vespertino A CAPITAL em 2/4/71. Na altura da publicação pela assirio e Alvim dos Textos assinalei a existência deste texto quer ao João Pinharanda quer aos editores. É uma pena este texto desaparecer de circulação. Aqui vai.



"Uma obra é um procedimento imaginário, imaginado, que explicita técnicamente uma função ética."

Álvaro Lapa


Revendo o que já fiz em figura de pintor, eu verifico uma constante, a da imagem saturada. No que creio coincidir com o destino desta arte. O que para mim é flagrante, em cada obra que admiro, é uma saturação dos meios usados, ao nível da técnica, da imagem e da ética revelada. Não é indiferente esta discriminação: a técnica é o primeiro grau, operatório. A imagem é o resíduo, e o ponto de partida; é aleatória, porque qualquer imagem serve, e é, de simbólica, incomparável, porque a sua função representativa é experimentada a um nível que, ao ser viável, a constitui inevitavelmente. A ética é o pathos privado e público, é o carácter e o destino do autor. Todos estes planos são autónomos, por isso podem surgir separados. Mas não são exclusivos, por isso nunca surgem separados. Uma obra é um procedimento imaginário, imaginado, que explicita tecnicamente uma função ética. É, por posição, incómoda, contraditória e flagrante. É incómoda mediante o pensamento ético a que acabam por reduzi-la, é contraditória nos meios em que se arrisca o mais possível a não ser, e é flagrante na veemência da imagem que introduz. A conjugação destes factores é altamente rara, porque só pode ser garantida pelo desinteresse do seu agente. É nisso que consiste ultimamente o plano ético. É um factor de vida, vale dizer, inextripável. Inegociável. Ocioso, pois? Sim, o meu progresso tem-se gerado para o ócio, e nisso me vejo cada vez mais só e livre. . Arte, cultura, são fenómenos de abundância. Só num excesso de crença e de espontaneidade são transmissíveis. Aquém destas tem-se a subarte, a subcultura: o esperanto emocional de que se nutre o convés de baixo, sem nunca assomar ao ar real da amurada. É o grafismo no chão da cova, a idolatria dos escravos. Mas à frente...

Quando se mostra, o silêncio nega-se. Por instantes ele formaliza-se. A arte é a degradação do silêncio. Por isso os criadores a odeiam secretamente, e alguns publicamente. Quando esta aversão se publicita, esteticiza-se muitas vezes mais depressa que as emoções esperantistas do convés de baixo. Se não se publicita, porém, de secreta torna-se purista, apodrece nos seus sujeitos, reduzidos a perpetuá-la em missa negra de um surrealismo corporativo. Que fazer dela, da anartisticidade prévia e santa? Eu creio que ela é um bom tema, é o meu, pelo menos, e o dos autores com quem me entendo. Mas reparai: trata-se, como disse, de um elemento raro de detectar, e não seria aqui que por excepção veríamos o invisível. Eu não devo julgar, pelo sofrimento de que me acompanho para progredir, da raridade do diálogo mediante as imagens do meu progresso. Porque se não progride por assim dizer em linha recta, se não avança para (um ideal comunicável, por exemplo, ou o de um belo explicitável), mas progride-se talvez segundo uma regra cada vez mais impopular. Não vale pois confiar numa cada vez maior comunicação efectiva. Não é nenhum programa, o que estou a sugerir, pelo qual eu ordene as minhas obras. Nem elas me obrigam em figura de passado. Não tenho obra pas¬sada nem futura, que me mace os nervos. Tenho um mundo, para assumir e passar a outro assunto. Darei ou não testemunho da minha realização, conforme tudo o que nela acontecer.

A função de recusa

Do que eu vivo e dou a ver é da recusa. Sugiro um exemplo, o da interro¬gação acessível a qualquer homem. Mas também traduzo a resposta em forma de solução prática, e aqui me quereria ver mais acompanhado. Por exemplo: supôs-se finalmente, que eu sugeria atitude avessa ao século. Por falta de empenho em viver dele? Por desinteresse óbvio para com as manhas que o absolvem? Por lhe não pertencer, de algum modo, o aborrecer? Sim, é patente na minha obra a função de recusa. Mas tem-se mais para ver, se se aceitar a recusa ao fundo do nível, em que o que há não são os nomes e os pleonasmos, e as coisas encorpadas do luxo mole, mas a permanente retirada do ser ante os olhos, e a sua recriação impotente, que é o efémero destacar-se em fundo de vazio, há o Tempo, oh prováveis testemunhas, há a minha morte a desmascarar os exageros do langor animal. Qual é a solução prática?, respondereis. E eu pergunto--vos, provavelmente em pintura: todas as soluções são práticas. Por exemplo? A criação de um acto. Outro exemplo? A sua aceitação sem culpa. Outro ainda? A sua comunicação. Sabeis somar: o optimismo incurável de dever morrer.

Desacreditar da capacidade habitual

Posto que é de ver que se trata, eis o que as minhas obras jamais funcio-nalizaram: uma teoria estética do visível. Estamos num universo que só muito aparentemente tem entrada ou saída. O que vemos realmente é uma fuga inenarrável ante os nomes, ante os predicados. Ou, porque de ver se trata, é um mundo desfigurado. Seres vão e vêm, no campo quase silencioso que habitamos. Uns mais coisas, uns mais pessoas. Muita estupidez. Só raramente o humano, que existe; são os amigos com quem nas¬ce a promessa da escalada, a grande conjura. É destes factores que eu me ocupo a pintar. Porque os meus olhos são à frente, eu terei de ver o que sei. Os factores do que eu sei são: o meu encontro com os mestres da vida, a apologia da minha intuição e a aprendizagem da minha morte. Trato-os expressamente, porque os creio mais urgentes que o meu sucesso ao deixar que se harmonizem, e por isso eles me exprimem didacticamente. Porque o vagar de pintar harmoniosamente é a demissão no viver, "enquanto pintas não vives". Por isso o vigor está em conceber tudo vertiginosamente e para ponderar bastaram os infinitos que te antecederam e em que ruminaste toda a perfeição de que neste instante dispões. Também prezo mais a concepção das, acaso minhas, obras. Por isso pinto mais "exposições" que obras, o que não é bom nem mau, é um método. Pintar "exposições" é acreditar didacticamente na pintura; é também desacreditar da capacidade habitual dos meus concidadãos, que se lhes desse tudo numa só obra a não entenderiam tão devagar. Mas quando penso que em velho irei pintar obras dessas...

Possibilidade de viver mais

Há no imediatamente experimentável, cuja adição dá o quotidiano, um fundo de "diferença": aí nos imortalizamos, se quisermos. Aí nos perdermos, estupidamente repetidos, seres de convívio, animais de luxo de um ideal que é paupérrimo. Nós, impostores, prosperamos num real que flui, flui. É o medo que nos inutiliza. O comportamento artístico avança sobre o medo, sem o negar, mas tornando-o possível, tanto como à coragem. A coragem é esta aprovação do possível, do angustiante. E a arte, que a tem por função (a cultura, diria, se ainda fosse possível falar em arte e cultura sem sentir os brônquios entupidos de legumes podres), a arte é sempre um ofício angustiante alegre e horrorizado. De angustiante faz-se alegremente habitável o medo prévio, o terror fundamental de conferir possibilidade (sentido?) ao nada maior e óbvio.
As obras em que apareci são, por tendência, apenas esta concreção da possibilidade de viver mais.

Escrito no "Diário" de 13/2/71

G. Corso: "...it comes, l tell you, immense with gasolined rags and bits of wire and old bent nails, a dark arriviste, from a dark river within". ("How Poetry Comes To Me") - suja hóspede, vinda de um sujo rio interior, poderia começar por metáforas como esta. As imagens vêm de um sujo rio interior, a espessa memória do muito mais que agradável aparato da existência, das existências, do nem já eu nem tu mas decerto humano, ou talvez indecifrável humano. São os padrões: o corpo, a amálgama dos sentidos, o céu, a terra, a cultura que a mãe institui, os ímpetos da fantasia paterna, o irremediável, a delinquência, a beleza como diamante roubado na orelha do carrasco, a beleza indissociável para sempre da construção do acto nos lugares de agir, o amor voluptuoso indecifrável de dar, "o raio violeta dos olhos dela", a construção voluptuosa da doença, a revelação do ser na aparência, a constituição neutra do universo, a começar no humano circundante, a sabedoria como prática, só como prática, mas a qualidade "boa" do que acontece no instante de acontecer, a frequência dos acidentes físicos, os aventais com bolsos, os despojos funerários do já usado ("old bent nails"). Começo a assumir esta inesgotável perfeição e aí me espero, nesse lugar neutro que é memória mas também paixão, surto e tremenda igualdade.