Thursday, October 19, 2006

o criticismo interesseiro e de poucos amigos


Qualquer académico (e não só!) sabe que, diga o que se disser, mais cedo ou mais tarde alguém lhe cai em cima com ganas refutativas, mesmo que se trate de um acto gratuito ou de admiração por parte do conscencioso refutante. O estado de guerra acentua-se no dominio especializado das “interpretações” – hermeneuticas, exageses, e criticismos escarafuncham o que há para escarafunchar – descobrem os pontos negros e espremem-nos até que saia toda a porcaria e “aquilo” fique em ferida. Esta lógica quase assassina não nasce apenas das lutas de poder nas instituições especializadas, mas é práticamente uma necessidade da escrita (ou qualquer coisa que se registe) que só pode aspirar à sobrevivência graças a uma singularização, ou se quiserem outro termo, diferença, do produto. O mesmo se pode dizer de qualquer obra de arte seja em que dominio for. Trata-se de uma necessidade formal, e que ainda por cima, se consolidou durante o paradigma modernista – é a originalidade, ó meus grandes malandros!

Uma boa maneira de descrever algumas das coisas que fazemos às coisas seria dizer que, em todo o mundo, grupos diferentes de pessoas se reúnem à volta de muitos bocados desse mundo, atribuindo-lhe intenções, disposições e até linguagens.

É uma bela defenição, esta de Miguel Tamen – e como quase todos os textos de Tamen, prudente, e no fundo maliciosa. O seu refinadissimo estilo critico, é realmente crítico. É nisso que o admiro, e é através dessa admiração que participo na comunidade dos que têm similares interesses e que num certo “meio” opinam a torto e a direito. Ao contrário de Tamen sou um não-especialista, seja nestas venenosas matérias, seja mesmo nas matérias em que me pareço ter especializado. Tamen, neste texto fala de “um certo modo” sobre “um certo modo”, isto é, no fundo de reservas que distingue um interprete prudente de um interprete fanático. O interprete prudente está defendido à partida, dando a entender que as suas interpretações se distinguém (pelo “certo modo”) e que são especificas de determinadas circunstâncias, ou, se preferirem, “objectos”. Haverá uma outra hipótese, a do interprete imprudente, que se distingue quer do interprete que se açaima a interpretações inquestionáveis, quer do conscencioso dandy que ganha a sua vidita a propor interpretações e a gerir e publicitar reservas. Este tipo imprudente manda bocas desconcertantes. Há uma tradição nesse sentido – tradição de provocadores em muitos casos com tiros ao lado e afirmações líricas e incipientes. É nesse tradição de arruaceiros em que me integro. É certo que o estilo arruaceiro dissimula muito do afecto que se possa nutrir pelos seus admiráveis assuntos. Mas é um estilo excitante que mistura a banha-da-cobra oracular do tipo de interprete fanático, com a comicheira (já assinalada em Platão a propósito da excitação provocada pelos sólidos regulares) que o jargão do criticismo provoca.

Tamen fala de três teses (“muito gerais”) que deve ter discutido algures e a que não tenho, por ora, acesso aos diligentes escrutinios e considerações de reserva:

1) “Só no contexto de uma sociedade de amigos uma coisa se torna interpretável e descritivel de um modo intencional”. Tamen cita a propósito a formulação ceptica de Bouwsma de a linguagem ser “uma comunidade de acordo na qual nos compreendemos e equivocamos”, e Quine , “adquirindo-a temos de depender inteiramente de pistas disponíveis intersubjectivamente relativamente ao que dizer e quando”.
2) “Não há objectos interpretáveis ou objectos intencionais, mas apenas o que conta como um objecto interpretável ou, melhor, grupos de pessoas para as quais certos objectos contam como interpretáveis e que, em conformidade, lidam com certos objectos de modos reconhecíveis.”
3) “Estes grupos são sociedades de amigos”, mesmo que se tratem de criaturas que nutrem afectos por “objectos notoriamente incapazes de reciprocação, magnificamente ilustrada por muitos tipos de comunidades de amigos contemporâneas (desde os críticos de arte até aos defensores dos direitos dos animais).”




O primeiro ponto questionaria a amizade (contextualizante) em que se geram tais sociedades. Mais do que a amizade julgo que são “interesses”, nobres ou mesquinhos, que movem as pessoas num determinado campo interpretativo ou produtivo – a amizade, e, em muito maior grau, a inimizade, é consequência, do interesseirismo que pressupõe o grupo. Neste caso prefiro a imagem aguerrida e conspurcada do “interesseiro”, ou do gajo do lobby, à desejável e idealizável amizade (no velho e nobre sentido “academico” – ò bom Sannazaro!), mesmo se esta amizade se consolide na pandega e nos copos. A defenição de Bouwsma, mais realista, sublinha a normalidade do equivoco. Eu vou mais longe e destacaria as raridade da compreensão. Assim sendo há grupos de interesses que procuram extrair sentidos, normalmente equívocos e raramente compreensiveis. É a redundância do jargão que reforça o grupo de interesseiros. A normalidade do equívoco é soberbamente compensada pelas excepções, se bem que muitas dessas excepções se alicercem, estranhamente, em equívocos.

No segundo ponto, mais operacional, limita-se a constatar que os ditos objectos são gerados pela comunidade interesseira como uma coisa “que conta como”. Fábula ou contabilidade? Coisas a ter em conta? Tratam-se de actos de contrabando de sentido segundo “modos reconhecíveis” pelos contrabandistas de sentido. Os contrabandos fazem-se entre o sentido interno ou esotérico, cheio de indirectas para os que estão mais dentro do assunto, e o sentido externo ou exotérico, mais preocupado com a eficácia e a propaganda (procurando, interesseiramente, extraír dividendos de alguém!).

O terceiro ponto de pouco adianta. Questionável é a não-reciprocação dos supostos objectos. Mas graças ao segundo ponto de Tamen ponto não podemos distinguir os tais objectos da comunidade, logo, a questão da não-reciprocação, que à primeira vista parecia brilhante e nos faria ver os interpretes como um grupo de punheteiros desperdiçando a sua amizade e energia em afectos inuteis por coisas quiçá nobres, é falsa. O que faz mover os interpretes não é o prazer fetichista que se possa extraír de um objecto inanimado ou verbal, mas o feed-back afectivo da comunidade, mesmo quando as respostas não acontecem. Daí que seja importante continuar a dizer e a comunicar.

Há um caso, mais difícil e singular, de determinadas experiências de determinados membros das comunidades de interpretes, que são incomunicáveis, não por lhes faltar linguagem, mas por serem fruto de uma experiência de tipo mística. Essa experiência pode ser consequência de um forte impulso interpretativo, e até pode estar subjacente ao interesse interpretativo (interpretamos para ter experiências fortes que são refráctarias à sua explicitação). Mas é desprezível fazer do inominável quer um pressuposto quer um programa interpretativo ou legitimizador (como diria Julio Rato: “dizemos não ao abominável inominável”!) de interpretações ou de obras. O paradoxo do pseudo-silênciamento já foi analizado por muitos (em particular por Derrida) e a equivocante “sentença” de Wittegenstein sobre o assunto gerou mais admiradores e fez correr mais rios de tinta que o resto da sua obra.



Tamen no fim do livro que aborda estes problemas (“Amigos de objectos interpretáveis”) avança com um resumo (dirigido a quem?) que nos convida cada vez mais a colocar aspas (ou fundas suspeitas) sobre as noções que legitimam as práticas interpretativas, assim como sobre as nossas genuinas e pouco gerais interpretações: “não parece haver coisas muito interessantes e gerais que possam ser ditas acerca da interpretação e, sobretudo, não se podem dizer muitas coisas acerca da interpretabilidade e de objectos interpretáveis, para não falar já das caracteristicas comuns a objectos interpretáveis, excepto talvez que essas coisas não existem, ou que pelo menos não há muita necessidade dessas entidades para caracterizar aquilo a que tenho chamado “interpretação”.”

No fundo a convicção de Tamen (apesar da hipotese algo budista da inexistência de tais coisas) não é diferente da nossa quando parodiamos Wittegenstein ao substituir a noção de que o sentido é um uso, pela do sentido como um ab-uso, como algo hipotético e forçado que nos singulariza em guerrilha contra tudo o que nos ameaça, e que apesar de tudo acrescenta algo, graças a algum reconhecimento comunitário e interesseiro, ao campo das coisas reconhecíveis e afectuosas. No fundo o que nos faz mover nos trilhos da “interpretação” é algo que nascendo do sentimento de perca e de vulnerabilidade (como suposta e jubilante “autenticidade”) nos arranca para uma produção-predação que é simultaneamente refutativa e criadora de hipotéticas alternativas – purgatório negatório e limbo supositório – um “se” e um “não”, um a “não-ser-que”: unlessness.

Saturday, October 14, 2006

heteronomias de heteronomias


Há 20 anos atrás eu e o Alberto Dias (Juntamento com J. Rato, F. Xavier e outros) proposemos a noção de entreactor como alternativa à noção gasta de autor ou à sua polémica «supressão» às luvas maneatadoras dos estruturalistas e post-estruturalistas. Os heideggarianos diriam que a puta da linguagem nos fala falando-se, mas nós também nos prostituimos em performances nela e com ela, com o atarantado fardo de uma performance (é isso a «autenticidade?»).

O que em certa medida é òbvio na cumplicidade com a linguagem escrita ou falada, ou no nos deixarmos encenar em ready-mades que reencenam popisticamente (ou através de duchampianas lentes) uma suposta «presentação», já não o é na animalesca prática da pintura, por mais reaccionária que esta nos «re-presente.»

Vem isto a propósito de um texto de Agamben sobre Deleuze e Foucault (ò cliché das referências post-mod.!) que nos fala da Imanência absoluta, ou melhor «L'immanence: une vie...» - glosar o texto de Agamben agora? Nem pensar. Mas a ideia da imanência absoluta é a da própria experiência da pintura. A imanência é o que nos situa como corpo, como descontinuidade de uma experiência que é inacabada mesmo antes de começar a ser ou depois da morte. Pintar é afinar o corpo nas suas sucessivas revelações. Mas citemos Agamben citando Deleuze:

Compreendemos porque é que Deleuze chega a escrever de uma vida como sendo «potência, beatitude completas». A vida é feita de «virtualidades», ela é potência pura que coincide de forma espinosiana com o ser, e a potência, na medida em que «nada lhe falta», na medida onde ela é o constituir desejante do desejo, é imediatamente beata. Todo o alimentar-se, todo o deixar-se ser, é beato e desfruta-se.

Há uma referência um pouco antes à expressão ladina de Espinoza «pasearse». A utilidade filosófica dos verbos reflexos excita Agamben mas alembra-me, mais uma vez Lapa (todo este blog tem sido uma soma de elegias, algo epitalâmicas, a Lapa). Cito Lapa:

Quero dizer que o fundamento da pintura, portanto da possibilidade de obter pintura, é o funcionamento do corpo na e fora da operação de pintar.

O corpo é um movimento sem princípio nem fim.

A pintura de Álvaro Lapa, que nas atira, como muitos dos escritores que «encaderna», para uma vida mais vida e um corpo mais corpo, não faz com que passeemos, mas faz que passemos de um estado de espectadores ou de contempladores, ainda na recatada e fetichista postura a que não se furta Duchamp, para a condição mais plena do «passear-se». Os «campésticos», titulos de alguns quadros de Lapa, designam a indistinção imobilidade-movimento, paisagem-corpo, sem termos sequer que ser sacudidos pelo espectro kantiano do sublime. Fale sr. Lapa:

Nenhuma teoria também aqui: o puro exercício material e espiritual de uma função, a pintura como função, o pictórico no sentido empirico de aquisição, não parte de principios conscientes a não ser num sentido “vasto”, “flutuante”, tanto como artistico, emissivo ou receptivo, em geral. Apatia, transe, euforia, revolta, angustia, serenidade, etc., tudo termos emocionais relativos ao corpo afectado que não suporta enquanto tal quaisqueres valores.

Nós não sabemos o que a pintura, a arte em geral, significam, sequer como sentido oculto. Podemos a esse respeito contar histórias ou deixar de contar.


Ou acedamos vulnerávelmente ao «passear-se»: absoluto sem «Absoluto». Não as reticências com que a modernidade se pavoneou e se limou e se limitou (franciscanamente, minimalisticamente, puritanamente), mas o i-rreticente, o se-não. UNLESSNESS

Enchidos de Heraclito


Passei hoje a limpo velhas traições a um Heraclito a que já não me pretendo fidelizar. Cada vez mais me são alheias as pouco hormonais restituições hermeneuticas e outras cruzadas afins. Sinto-me cada vez mais oliquamente perspectivista, atiçadamente anamorfosiante. Há uma euforia na distorção que dá uma alegria aos irrestituíveis passados. Por isso, posso cantarolar com o Àlvaro Lapa e garantir que esta nossa razão, mais alegre e quiçá demente, é mais forte que a velha das calendas gregas dos brejeiros e obscuros tempos em que a filosofia pareceu nascer. Irritante pretensão? Porque não?

I. Os olhos dão testemunho mais exacto que os ouvidos.
II. Disposição que se esmera em não se mostrar é mais forte do que a que se oferece de bandeja aos sentidos.
III. O que se manifesta carnavaleia.
IV. Quem busca quimeras acha reflexos e pó (ou: quem busca a espectral verdade apenas encontra petreficantes razões)
V. Indaguei o que em mim se vai fazendo.
VI. O que se dá a ver e escutar merece um pensar-se.
VII. Os cães, ao ladrar, mostram desconfiança aos exotéricos.
VIII. Conhecer muitas coisas é dispensável para quem cultiva a astúcia da prudência.
IX. O soberano, e suas matilhas de oraculos que são soltas em Delfos, não desvenda nem oculta, mas dá pistas.
X. Se a esperança não te habita (ou a conjectura) nunca acederás ao inesperado: em inexploradas vias não se abrem caminhos.
XI. Mesmo os daimones poderosos arredam pé dos nossos pensamentos, pois não lhe damos trela.
XII. Mesmo o sábio dos sábios, em presença de daimones poderosos, se assemelha ao burro dos burros.
XIII. A beleza símia, comparada com a que habita os homens, é feioquita.
XIV. O que se opõe, permanentemente se compondo, é a ubiqua obliquidade.
XV. A via que rebaixa e a que sublima são a mesma treta.
XVI. A ilusão propaga-se nos homens quando estes se detêm no fluxo das aparências.
XVII. Assim o achou Homero, sabio entre homens. Crianças que matavam piolhos enganaram-no dizendo: o que vemos e agarramos, abandonamos, o que não vemos nem apanhamos, esmagamos.
XVIII. Se tudo o que é coisa é fumo, então são as narinas que destilam o seu sumo.
XIX. O que contraria acorda. O que conflitua belamente dispõe. O que se vem é atlético.
XX. O demónio lutador triunfa nas coisas.
XXI. O atlético impera: nuns distribui o divino, noutros a humildade. A uns amarra, a outros liberaliza.
XXII. Nem luz nem sombra, nem bem nem mal nascem de indistinto fundo. Ambos se entre-engendram porque são um Mesmo.
XXIII. Nos limites do circulo cada ponto é principio sem principio.
XXIV. Dentro dos fluxos revoloventes o que serpenteia é identico ao que se endireita.
XXV. Para os vigilantes as coisas são identicas e comunicam. Para os que dormem as coisas sonham segundo cada qual.
XXVI. O homem habita-se nos daimones.
XXVII. Mesmo no sono cooperamos, revigorando as coisas.
XXVIII. Coligações: englobante/refratário, convergente/divergente, disposição/oposição. Pela multiplicidade singularizamos. Pela singularização multiplicamos.
XXIX. O reuninte é: divisível/indivisível, originado/potêncial, discursivo/acordante, pai/filho, daimon/homem.
XXX. Não me são minhas as palavras, sómente a Vib-resão (ou o vib-ratio) vos é dada a escutar – o que conectamos devolve o Mesmo.
XXXI. Não percebem como o que resiste pode reunir – harmonia de opositores como no arco e lira.
XXXII. O que nomeia o arco é vida, o que ele desenha é morte.
XXXIII. Entramos e ficamos por entrar no Mesmo do rio. Somos sendo. Acedemos cessando.
XXXIV. Aqueles que mergulham no que identicamente flui, banham-se em àguas permanentemente renovadas.
XXXV. Humidos são os sopros.
XXXVI. É preferivel dar cabo da desmesura do que andar a apagar fogos.
XXXVII. Não podemos agarrar os contornos (ou os cornos) daquilo que pensa, pois teus passos também não conseguem trilhar o fim dos caminhos. Ainda mais funda é a Vib-rezão que nos estremece.

Saturday, October 07, 2006

Documentáriop de um «comentário»



A pintura como repetida desinência não-verbal. A fisicalidade extrema-se através dela e gera uma ironia de aparência alegorica. Mas um dominio alegórico flutuante e às avessas. Acampamento “alegórico” junto às urbanidades da linguagem. A pintura como “aquilo” que se faz representável na “contra-representação”.

Excursões anfíbias às intermitências a/significantes. A a/significância é o espaço, o momento de preplexidade, manobra, afasia, excitabilidade, inércia, entre a significação e o insignificável.

A pintura anormaliza os conhecimentos que instituem e que instituimos, restituindo a vacilação do corpo a querer por-se em voz e em “barulheira” (gritos, rumores, musicas e outras manifestações do dominio “pânico”).

São os degraus (para os Parnasos Múltiplos) dos cepticismos que afinam a confiança (filha do sabor oculto – a fruta – do entusiasmo) e semeiam as eclosões celebrantes.

A arte arrasta-nos para uma experiência: concreta porque desintimidante.

As obras de arte mascaram o silêncio para se oporem ao inominável – seria equívoco negar que acima de tudo as obras de arte falam (“barulham” ou mesmo baralham) numa auto-recompensa do autor e numa eterna estranheza com que os espectadores se vão familiarizando.

Quem tenta fintar a questão do “não-ser” não compreende a sua utilidade e alegria “destrutiva” que inviabiliza todas as séries legitimizadores (ver Górgias, Nagarjuna, os do Zen) – a inevitabilidade lógica do “não-ser” desligitima, devolve a “autenticidade” e aproxima-nos de todas as distâncias – há nisso alguma “densidade patafísica”.

A alegria e a tragédia são o sumo da arte. Essa pulsão que existia como um rio negro e subterrâneo nos gregos saíu há luz e foi considerávelmente constituída como um canone em carne de Holderlin aos nossos dias. Há na alegria e na tragédia uma alergia ao puramente simbólico – o simbólico orienta-se segundo uma eficácia utilitária, a arte, pelo contrário, inviabiliza as útilidades para além da “saúde”.

A Natureza é solipsista na sua generosidade. O narcisismo da artephysis não a consegue desviar das incontornáveis utilidades “biológicas”. Tudo é recuperável e reciclável.

Os nossos limites criaram-se enquanto “limites” – cada limite é apenas uma fase (ou frase) do crescimento, uma etapa virtuosa na ilimitada arte amatória.

As elites são claques demasiado próximas e restritas – não são tão cegas quanto as outras claques, e o seu número incomoda menos. Os artistas querem ser adorados, ou admirados como deuses? Confiam demasiado na coqueterie das elites dos que os adulam?

É a sobreabundância da artephysis que nos atira para condições cada vez mais oblíquas. Cada condição obliqua é geradora de ubiquidades fragmentárias, intermitências celeradas que conjuntam não-totalidades.

O que se pretende pintar é o caracter intoxicante da artephysis – as “coisas” constituem-se como soma (ou ebriedade) das maquinações da Forma (software biológico, através do qual as formas se extenuam e se biodegradam) e da Retórica.

Não procuramos um público ideal, mas um publico que des-idealize, e que através da desidealização aumente, no seu peito, o estado vertiginoso de encantamento.

As obras excepcionais não aplicam conhecimentos, não citam expressamente (embora gerem citações e alusões), mas fazem fluir o que nos conhecimentos é estrato metamórfico.

O efeito de uma obra é o afeto que lhe sobra – mas sem “patetismo” (sentimentalisses de consumo).

Uma teoria é sobretudo uma imprudência com que envergonhadamente me identifico em dados momentos.

Teorias são curiosidades produtivas que utilizam o artificio da generalização para consumar abusos de linguagem aliciantes. A teoria sem a garantia fascizante da “generalidade” é, por tradição, sofistica e opinativa.

A nossa excitabilidade teórica é algo tântrica, no sentido em que alia uma prática mágica (e sexual) e as técnicas meditativas (que seriam supostamente ascéticas) a um fulgor produtivo (e artístico). A boa sabedoria só pode ser arte. Se respondemos a algo é indirectamente porque suspeitamos da aura das “liberdades” que se julga que se tomam. Só nos conseguimos revelar a nós próprios na ebriedade dos disfarce – não no cabotinismo das sempre falsificadas sinceridades.

Somos autodidatas de algo imberbe – é a fidelidade flexivel a algo que continuadamente julgamos acreditar que nos torna algo inconsequêntes.

Há, é certo, um programa de evasão (“È fugindo que nos encontramos” segundo M.V.), mas não há um onde, interior ou exterior para consumar os escapanços.

Já nem a condição (confidente ou inconfidente) de exilado é possível – asilamo-nos cada vez mais nas nossas vulnerabilidades. A vulnerabilidade não é algo que seja dado: é um trabalho de investigação, durissimo, exigente e negligente ao mesmo tempo. Investigação? Num sentido demasiado nosso, sem ser jogo de linguagem, como em Wittgenstein, mas aperfeiçoamento das sensibilidades do corpo nas suas relações com as linguagens.

Friday, October 06, 2006

A comédia interstícial de A.L.(P.) - folhetim


Como é que aparecem e desaparecem ( inclinando-se como devorante monstruosidade) as famigeradas forças da Forma?
O que é que nos trai e atrai? O que é que nos apela à pele ou a repele?
Em que incendios nos deixamos incensar? que tragédias nos apetece temer?

A Forma torna-se aparato nas parecenças patéticas/paródicas do homem. A sua estranhesa supostamente inquietante é uma inclinação para os rios do riso que a faz deslizar de aparição em aparição sem que uma ilusão final, apocaliptica ou nirvânica, pontue definitivamente.
O homem é uma criatura que se auto-cria gerindo familias de formas todas elas falsas, porque mais antigas que as ideias dos arquétipos. Todas as formas são a fatalidade de o já terem acontecido e acamparem connosco. A sua inevitabilidade faz com que os outroos estejam demasiado presentes como presenças incómoda. A proeminência e a capacidade de propagação das formas são a prova nem aprova, apenas nos dá a entender que um erro e um desejo de errância as habitam. Qualquer justificação seja teleológica, ontológica, ateia ou simplesmente desbocada é a insistência na glória de um erro fecundo.
O meu aparecimento é o desaparecimento de muitos outros. Mesmo a minha involuntária presença lança laços tentaculares sobre tantos que ignoro. São as comédias do reconhecimento que engendram as relações de poder que fazem com que os outros sejam outros e que eu me queira em cabana, seja solipsista, seja em suposto desafago de desapego. Somos absolutos no que temos de mais privado. Somos, não por direito, mas porque nos falta qualquer direito ou uma razão que nos dê garantias de nos garantir.
Assentamos arraiais nas taras que nos singularizam.
Os imprevistos que ele constitui na sua solidão tornam-no eventualmente mais consciente ou se calhar não. A lúcidez, que chacina impiedosamente as aparições com razões cada vez menos soberanas, é porventura o contrário da iluminação, com a sua simpatia indeterminada que assenta nalguma cosmética e em bastante folclore.
Queremos emigrar das nossas manias hábeis para uma revolução que nos revogue e que destitua os hábitos que nos fazem e refazem, que nos «fugam» e nos refugam. Julgamo-nos quando fugimos às brasas das sardinhas de qualquer juízo. Somos apesar de tudo intensos mesmo nos prefácios às intencionalidades.
Só me dou a entender com alguma imposição, mesmo que esta venha mascarada da mais doce simpatia. Modifico-vos mesmo na indeterminação que o registo das formas propaga. Determino-me na minha indeterminação e indetermino-me na fancaria das formas que vou formando – acompanho-vos como aterrorizante empatia.
Os mimetismos são a radiação de qualquer entendimento, com ou sem linguagem por cima ou por baixo. A mimificação é prelúdio à mumificação. O mimetismo é um misticismo sem mistificação. As modificações são alheias ao sujeito, mas o sujeito deixa-se encarnar pela atração das coreografadas variantes. As mutações surpreendem-nos antes que tomemos consciência do anquilosamento.
A ebriedade é a consequência de qualquer influência. Quando nos deixamos influênciar a alegria sacode-nos como um demónio, até que caímos para o lado e nos dá uma vontade simpática de chorar.
Nem sempre nos apetece enxotar os que nos procuram e nos adulam com a sua simpatia carnívora. Tememos a magia da adoração que procura gurus de palha para sacrificar em altar seboso. A verdadeira beatitude é tude menos limpa e seráfica – está nas antípodas de toda a curvatura lombar. É o peito que se abre, mesmo que acolha as vindouras confusões.
Não nos salvamos porque nos assustamos com os sustos. As ultimas vontades procuram porlongar-nos no tempo mas efectivamente negam-nos a saciedade.
O jogo das formas anula-nos, mas se as formas não contarem connosco anulam o seu jogo e a própria Forma. Colaboramos num engodo, que é o tempo. Nada há para salvar senão o delicioso formigamento das ilusões.